Política Industrial e Globalização
José Tavares de Araujo Jr.
Unidade de Comércio da OEA
Este artigo foi preparado para o Seminário
sobre o Reino Unido e o Brasil, organizado pelo
Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais do Ministério das Relações Exteriores.
As opiniões aqui apresentadas são da exclusiva responsabilidade do autor.
Rio de Janeiro, 18 e 19 de setembro de 1997.
Sumário
I.
Introdução
II.
Marco Conceitual
III.
A Indústria de Telecomunicações
III.1.
A Experiência Britânica
III.2.
A Experiência Brasileira
IV.
Políticas de Comércio Exterior
V.
Conclusão
Referências
I. Introdução
Este artigo discute as similitudes e disparidades
dos atuais estilos de inserção internacional das
economias brasileira e britânica. O
principal foco de análise é a indústria de telecomunicações,
cujas
características permitem ilustrar pelo
menos três temas relevantes. Conforme procuro mostrar
adiante, esta indústria é um
dos núcleos de convergência do processo de mudança
tecnológica que
sustenta as tendências contemporâneas
de globalização dos mercados e de regionalização
das
estruturas produtivas. Devido a essa peculiaridade,
as condições de concorrência nessa indústria
geram evidências úteis para delimitar
o escopo ainda existente para a implementação de políticas
industrais por parte de governos nacionais.
Além disso, a reforma institucional promovida pelo
governo britânico no setor de telecomunicações
durante os anos 80 tornou-se uma das fontes
inspiradoras das novas teorias sobre regulação
industrial, e constitui, portanto, uma referência
oportuna para o debate em curso no Brasil
sobre tais questões.
O texto está organizado da seguinte
maneira: A seção II apresenta os instrumentos analíticos
que
serão usados na discussão subsequente.
O argumento ali desenvolvido parte da constatação de que,
desde o final da década de 70, os custos
de transação entre os agentes econômicos estão
caindo
mais rapidamente do que os custos de produção.
Tal mudança explica os novos padrões de
competição internacional, e
também gera demandas inéditas no âmbito das políticas
governamentais.
Com base nesse marco conceitual, a seção
III analisa as políticas que orientaram o crescimento da
indústria de telecomunicações
no Reino Unido e no Brasil, e mostra que, em princípio, não
existe
qualquer antagonismo entre política
industrial e globalização. A seção IV contrapõe
o argumento,
através de uma breve comparação
entre as políticas de comércio exterior dos dois países,
com o
objetivo de destacar os mecanismos de intervenção
estatal que se tornaram obsoletos. Por fim, a
seção V resume as principais
conclusões.
II. Marco Conceitual
Os padrões de concorrência internacional
vigentes na presente década constituem o resultado da
interação de três fenômenos
interdependentes desenvolvidos ao longo dos últimos 15 anos:
a.o declínio nos custos
de transação entre os agentes econômicos, produzido
pelas inovações
tecnólogicas
nas indústrias de computadores, software e telecomunicações;
b.os novos padrões
de especialização produtiva e de gestão empresarial,
marcados pela
redução
do escopo de diversificação das firmas e pela proliferação
das práticas de
subcontratação;
c.as tendências simultâneas
de globalização de mercados e de regionalização
das estruturas
industriais.
A origem destas mudanças residiu na
dramática redução — ainda em curso — nos custos de
processar, transmitir e analisar grandes volumes
de dados. A figura 1 revela a magnitude desse
evento através de um indicador inequívoco:
a evolução do índice de preços "hedônicos"
de
computadores pessoais vendidos nos Estados
Unidos entre 1980 e 1995, calculado pelo Bureau of
Economic Analysis, órgão do
Departamento de Comércio do governo americano. Este índice
descreve as variações de preços
ponderadas pelas inovações introduzidas nos computadores
a cada
ano, levando em conta o tamanho de memória,
velocidade de processamento e capacidade do disco
duro. Assim, para os agentes econômicos
estabelecidos no mercado americano em 1995, a
capacidade de processar informações
era, em média, cerca de 13 vezes superior aos níveis vigentes
em 1980!
Tais condições afetam uma decisão
estratégica que qualquer empresário toma periodicamente,
que é
a definição do escopo de atividades
da firma e, em particular, de seu grau de integração vertical.
O
parâmetro básico desta decisão
é a relação entre custos de produção
e custos de transação, a seguir
denominada de p, sendo que os custos de transação
resultam essencialmente do grau de imperfeição
do sistema de informações vigente
no mercado, como arguiu Dahlman (1979). Logo, em princípio, a
relação p varia inversamente
ao grau de dispersão das atividades da firma, e os dados da figura
1
sugerem que p tem sido crescente para a maioria
dos setores industriais. De fato, o estudo de
Markides (1995) sobre a reestruturação
industrial da economia americana nos anos 80 mostrou que
a tendência em direção
à diversificação e à integração
vertical, que havia vigorado durante cerca de
50 anos naquele país, reverteu-se rapidamente
naquela década. Segundo o padrão atual, as
empresas procuram concentrar-se exclusivamente
naquelas atividades que conseguem produzir de
acordo com os requisitos da fronteira tecnológica,
e subcontratam todas as demais componentes do
vetor de bens que elas oferecem no mercado.
Figura 1
Indice
de Preços Hedônicos de Computadores Pessoais (1982=100)
Fonte: U.S. Bureau of Economic Analysis
Assim, a subida da relação p
promove simultaneamente a redução do escopo de atividades
de
certas empresas e a expansão de oportunidades
de mercado para outros produtores cujas estruturas
de custo sejam mais adequadas para ofertar
os bens e serviços que foram descontinuados no
primeiro grupo de firmas. Em condições
de livre comércio, tais oportunidades podem ser exploradas
indiferenciadamente por fabricantes locais
ou do exterior. Entretanto, no caso de insumos
intermediários e serviços subcontratados,
as empresas compradoras preferem em geral utilizar
fornecedores situados nas proximidades de
suas instalações, devido às limitações
de tempo e aos
custos de manutenção de estoques.
Em síntese, a queda nos custos de informação gera
novas
estratégias de sobrevivência
das firmas domésticas, eleva seu poder de competição
e altera a
inserção internacional do país.
Por um lado, crescem os fluxos intra-industriais com os países
vizinhos e, por outro, o comércio de
bens finais com o resto do mundo.
Tais mudanças correspondem a uma nova
agenda de política industrial, na qual perdem eficácia
alguns instrumentos, como barreiras comerciais
e índices de nacionalização, e adquirem relevância
novos temas, como os de captura e informação
assimétrica. No passado, quando o governo decidia
promover uma determinada indústria
através, por exemplo, de tarifas aduaneiras e estímulos à
integração vertical, a avaliação
dos efeitos de curto prazo dessa política podia ficar restrita aos
impactos sobre os preços domésticos
e às transferências de rendas. As consequências sobre
os
custos de transação, ainda que
existentes, podiam ser abstraídas da análise, dado que não
afetavam
as estratégias dos agentes econômicos.
Atualmente, além de ser incluída entre os custos relevantes
da proteção, esta parcela precisa
ser analisada também sob a ótica das distorções
que introduz nas
relações interindustriais, ao
impedir que as firmas domésticas adotem os padrões de gestão
empresarial adequados às tecnologias
disponíveis.
Tal como no passado, o objetivo básico
da política industrial continua ser o de promover sistemas
produtivos eficientes, aptos a acompanhar
o rítmo do progresso técnico internacional. De acordo
com a teoria microeconômica, uma indústria
é eficiente quando sua configuração é sustentável,
isto
é, quando o número de firmas
ali estabelecido e seus respectivos vetores de produção são
aqueles
que permitem minimizar os custos de atendimento
à demanda existente. Ocorre que frequentemente
as configurações sustentáveis
são oligopólios ou monopólios, o que obriga o governo
ao delicado
exercício de conciliar os instrumentos
de promoção industrial com os da defesa do interesse público.
Assim, estratégias industriais restritas
ao primeiro objetivo correm o risco de se tornarem prisioneiras
do poder econômico das grandes empresas,
gerando apenas rendas monopolistas e mercados
ineficientes. Entretanto, uma regulação
bem sucedida de setores concentrados depende de que seja
contornado o problema da assimetria de informações.
Para impor uma conduta virtuosa à indústria,
o governo precisa de instrumentos que compensem
sua ignorância quanto às tecnologias e às
estruturas de custos vigentes, cujo conhecimento
completo é exclusivo das empresas alí
estabelecidas.
Em suma, a atual agenda de política
industrial supera em extensão e complexidade o temário que
vigorava há cerca de 20 anos. O processo
de globalização de mercados está destruindo
gradualmente os atrativos do protecionismo
convencional, à medida em que acentua a necessidade
de mecanismos que compatibilizem as metas
de eficiência produtiva, transparência das regras do
jogo e bem estar do consumidor, como ilustra
o relato a seguir.
III. A Indústria de Telecomunicações
Na literatura sobre teoria da regulação,
o setor de telecomunicações é citado recorrentemente.
O
destaque não é casual, já
que este ramo é um dos núcleos de convergência das
inovações que estão
reunindo sob um único complexo industrial
os setores de telefonia, televisão, computadores,
software, automação industrial
e eletrônica de consumo. Estas inovações criam novos
vínculos de
insumo-produto e padronizam os requerimentos
de qualidade, tanto no interior do complexo quanto
em outros segmentos da economia tão
diversos como os de editorial e gráfica, bancos, serviços
de
consultoria e publicidade. No âmbito
das condições de concorrência, a convergência
tecnológica
implica uma contínua revisão
dos critérios para dimensionar mercados relevantes, barreiras à
entrada, economias de escopo, padrões
de produtividade e poder de mercado. Esta seção revê
a
conduta dos governos do Reino Unido e do Brasil
diante destas questões.
III.1. A Experiência Britânica
Entre a vitória da Sra. Thatcher em
maio de 1979 e o início de seu terceiro mandato em junho de
1987, a participação das empresas
estatais no produto interno bruto do Reino Unido caiu de 11.5%
para 7.5%, e mais de quinhentos mil empregados
foram transferidos para o setor privado (vide
Vickers e Yarrow, 1988). Do ponto de vista
da inserção internacional da economia britânica, o
principal aspecto a destacar nesse processo
foi a redefinição dos instrumentos de política industrial
do país. A experiência pioneira
ocorreu na indústria de telecomunicações, que serviu
de modelo
para outros serviços públicos
como o suprimento de água, gás e eletricidade, e posteriormente
tornou-se referência obrigatória
na literatura internacional sobre regulação e concorrência.
Pelas razões apontadas na seção
anterior, o processo de privatização no Reino Unido não
significou
a substituição do Estado pelas
forças do mercado, mas uma estratégia de longo prazo visando
estabelecer um sistema industrial doméstico
apto a acompanhar os novos padrões do progresso
técnico internacional. A estratégia
incluiu todos os elementos clássicos da política industrial,
como a
escolha do número de firmas autorizadas
a operar no país e a consequente reserva de mercado para
os produtores já estabelecidos, controle
de preços e da qualidade dos produtos ofertados, e a
surpervisão das condições
de concorrência vigentes na indústria. Como qualquer empreendimento
de longo prazo, a estratégia compreendeu
três fases bem delimitadas. A primeira, entre 1981 e
1984, foi a da preparação do
novo marco institucional. A antiga empresa estatal British Telecom
(BT) foi desvinculada do Post Office e o governo
anunciou a intenção de privatizá-la. Outros fatos
relevantes desse período incluem a
criação da nova agência reguladora, Oftel (Office for
Telecommunications), a autorização
para que a empresa Mercury entrasse no mercado, a
introdução do regime de controle
de preços e a venda de 50.2% das ações de BT. A segunda
fase,
de 1985 a 1991, foi a do amadurecimento do
novo modelo de intervenção estatal, quando o setor
de telecomunicações esteve restrito
ao duopólio BT-Mercury. A fase atual, posterior a 1992, pode
ser definida como a da consolidação
do modelo. Dentre os eventos mais importantes, cabe destacar
a entrada de novas firmas no setor, a privatização
do lote final de ações de BT, e o atual processo
de compra da empresa americana MCI por BT.
Uma peculiaridade do modelo britânico
de privatização foi a de conferir prioridades idênticas
aos
problemas de promoção industrial
e de captura. Por um lado, o Oftel controlava rigorosamente as
variáveis definidoras da estrutura
industrial e do processo de concorrência, através dos critérios
de
licenciamento, das normas de qualidade, das
regras de fixação de preços e da distribuição
de
privilégios. Por outro lado, a conduta
das firmas estabelecidas na indústria estava também limitada
por mecanismos adicionais descritos adiante
e pelo papel de reguladores de última instância exercido
pelas autoridades de defesa da concorrência,
o Office of Fair Trading (OFT) e a Monopolies and
Mergers Commission (MMC).
O princípio orientador da estratégia
implementada por Oftel foi o de que os níveis de eficiência
produtiva de qualquer indústria em
determinado momento constituem o resultado dos investimentos
e da experiência pregressa acumulados
pelas firmas estabelecidas naquele ramo. Assim, em 1982,
quando os estudos de mercado indicaram que
a configuração sustentável para o setor de
telecomunicações no Reino Unido
era um duopólio, o Oftel não só autorizou a entrada
da Mercury
como assegurou que, pelo menos por sete anos,
as duas firmas não seriam surpreendidas com a
entrada de novos competidores no setor. Além
disso, era necessário reduzir o poder de mercado de
British Telecom para que o duopólio
se tornasse factível. Tal objetivo foi alcançado através
da
política de preços, da interferência
no relacionamento entre os dois concorrentes e da concessão de
certas regalias exclusivas à Mercury
(vide Cave e Williamson, 1996).
O Oftel estabeleceu um regime de controle de
preços engenhoso e simples, conhecido como RPI -
X (Retail Price Index com um determinado desconto),
que atualmente é utilizado em todas as
indústrias reguladas no Reino Unido.
O regime tem duas regras básicas:
a.apenas a empresa líder
é controlada, e o teto fixado pelo governo se aplica à media
dos
preços
praticados pela empresa;
b.o valor de X, isto é,
o desconto a ser aplicado sobre o índice de preços ao consumidor,
é
válido
por um amplo período de tempo. No caso de telecomunicações,
BT esteve submetida
a quatro tetos
crescentemente restritivos desde 1984: RPI - 3, até 1989; RPI -
4.5, de 1989
a 1991; RPI
- 6.25, no período 1991/ 1993; e RPI - 7.5, entre 1993 e 1997.
Segundo o governo, esse regime foi escolhido
por três motivos (vide Armstrong et al., 1994, cap.
6). Em primeiro lugar, por ser transparente
e pouco vunerável à captura. Em segundo, porque
praticamente não envolve custos burocráticos
de surpervisão, dada a simplicidade das regras. Em
terceiro, porque estimula a eficiência,
já que qualquer inovação redutora de custos pode ser
apropriada pela empresa líder, ao contrário
do que ocorre com outras formas de regulação, como,
por exemplo, o controle sobre as margens de
lucro. De fato, conforme indica a figura 2, esta
hipótese mostrou-se correta. Não
obstante todas as restrições que lhe foram impostas, o
desempenho de BT após a privatização
tem sido notável. Entre 1981 e 1992, seu lucro operacional
cresceu a uma taxa anual média de 15%,
seu faturamento expandiu-se em cerca de 10% ao ano,
enquanto que seu volume de emprego manteve-se
praticamente inalterado, com uma leve tendência
ao declínio.
Figura 2:
Indicatores de Desempenho de British Telecom (1981—1992)
Fonte: Armstrong et al., 1994
Cabe notar que os indicadores de desempenho
descritos na figura 2 foram acompanhados por um
significativo aumento na qualidade e na extensão
dos serviços de telecomunicações do Reino Unido.
Segundo os dados de Oftel, o percentual de
chamadas telefônicas interrompidas caiu de 4.3% em
1987 para 0.3% em 1992, enquanto que os serviços
de reparo realizados em até dois dias úteis
subiram de 74% para cerca de 98% durante o
mesmo período. Além disso, o número de domicílios
com telefone, que era de apenas 42% em 1972,
atingiu a cerca de 90% em 1991 (cf. Armstrong et.
al, 1994).